Ao refletir sobre um trabalho que se encontra em elaboração, acabei desviando meus pensamentos para problemas relacionados ao sentido dos cinco sentidos e outras limitações. Anotei-os como segue abaixo. Sei que a questão é mais ampla do que isso, mas talvez o texto possa interessar como pequena incitação. (Os velhos Merleau-Ponty, Jean-Paul Sartre, Edmund Husserl, entre outros pensadores desde Platão, poderiam ser citados por relativizarem os sentidos, mas essa teorização marcada não era nossa intenção no momento e podemos livremente contrariá-los ou implicitamente citá-los - mas desejamos somente a anotação)
Sim que os cinco sentidos são parte do campo das possibilidades de caracterização de diferenças. É com eles que posso notar o "outro", isto é, o que (e quem) se difere de mim. E a certeza de que tais sentidos são uma obviedade os torna assunto sem interesse, pois sobrevivemos muito bem sem questioná-los. Nossos órgãos de apreensão crescem especificados, bem antes de o sujeito nascer "para si" e notar que sua mãozinha e a de seus pais, quando se tocam, são distintas. De fato, é normal distinguimos empiricamente a diferença de origem entre os estímulos nervosos do tato, do olfato etc.
Porém, na medida em que essa obviedade é evocada por uma parcela da crítica de arte mais conservadora e do senso comum para condenação da "arte contemporânea", vale abordá-la um pouco. Pois a divisão presente entre as linguagens artísticas lança mão dessas diferenças naturais para naturalizar formas de expressão humanas desenvolvidas ao longo de milênios, ou seja, radicalmente culturais (e não naturais). O mesmo ocorre com distinções baseadas em artes "temporais" e "espaciais", típicas da velha estética de Lessing, às vezes repetidas ipsis literis nos dias de hoje.
Parece crível que uma forte pretensão de verdade tenha levado à assimilação entre as formas de expressão em arte e a lógica "natural" dos membros da sensibilidade (artes visuais = espaço + visão; música = tempo + audição; teatro = drama + visão e audição…). É como se estabelecer a arte em bases análogas ao legado natural a tornasse herdeira de formas "substanciais", de modo a situá-la na ordem direta de um suposto "espírito universal". Claramente, assim se encontra uma perigosa justificação instantânea e mesmo uma distorção da natureza, cuja vitalidade não se desenvolve segundo esse teorema lógico.
No campo da comunicação social, pode-se argumentar que a redução excessiva da linguagem tenha mais eficácia do que a sua abertura. Entretanto, quantas possibilidades de expressão se perdem ao tentarmos especializar, determinar e enclausurar o discurso? Um dos esforços que lograram êxito na modernidade foi o de abandonar a sobrecarga dos códigos instituídos para deixar que relações de saber originárias entrassem na arte. Na música, não foi só Villa-Lobos que, ao romper com o tonalismo estrito (da tradição européia), pôde realizar a Tocata das Bachianas n. 2, o Trenzinho Caipira. Stravinsky, outro inquieto, havia ritualizado radicalmente as relações rítmicas, retomando o que há de corporalmente incitante no som. E a prosa oswaldiana aceita os limites em que o texto, a expressão verbal, pode desaparecer, para exprimir-se por semelhanças; a forma do sentimento de desnorteio dos personagens, por exemplo, se apossa do texto, e cria climas que não são da ordem da palavra. Enquanto um Stockhausen, injustamente massacrado por todos os saudosistas, afirma radicalmente a sonoridade como elemento do espaço ao articular mais de uma orquestra em performance simultânea em palcos distintos. Só para citar rapidamente alguns exemplos…
Tratam-se de rupturas com as "expressões" submetidas a códigos estritamente elaborados pela tradição, esses que foram ensinados e transmitidos dentro de um edifício ideológico transformado cuidadosamente em teoria, na mesma linha das exigências de classificação de São Tomás de Aquino. Pode-se identificar um excesso canônico no desenvolvimento da música tonal, cujo desenvolvimento foi dependente do discernimento de monges católicos, mesmo que, felizmente, isso não dê conta da espontaneidade da invenção popular, evitada pela erudição monástica. Mas, se o próprio tonalismo se situa na incorporação de elementos provindos da música profana ao canto monástico, podemos questionar a ambição à pureza.
É com o esforço de um poder central, porém, que as gramáticas e normas de comunicação podem ser publicadas e eternizadas quando os meios de difusão ideológica e circulação de escritos, por exemplo, são dispendiosos demais para serem exercidos pelo povo. A isso se deve um peso maior das forças conservadoras, mesmo que existam dissensões e discursos minoritários. Algo semelhante pode ser notado hoje em dia nas concessões de TV e rádio, ainda influenciadas em grande escala pela tentativa de garantir um domínio ideológico central. Nesse sentido, se aprendemos em libretos como a TV e a escola ("ideológicos", isto é, "dominantes"), a questão passa a ser a seguinte: ao pretender expressar-se, quem se expressa é de fato o chamado "criador"? Ou há uma gama de expressões já contidas nos códigos a que o sujeito foi submetido? Incluindo aí as limitações e proibições relativas aos "cinco sentidos" e às velhas "formas de expressão"?
A pergunta não é nova, mas não é demais lembrá-la. Além disso, seu excesso de simplicidade pode ter sido um fator para ter sido ocultada ou passado em branco e que somente tenha recebido a atenção que merece durante o séc. XX. Até hoje, a Igreja e o Estado são congratulados pelos livros de história vendidos aos alunos das nossas escolas, pois ambos foram patronos da arte para dela tirar partido com a invenção de estilos oficiais. Visão semelhante é propagada por críticos de diversas origens, dos mais engajados até os que nunca entraram em uma sala de cinema ou leram um livro, com ataques aristocráticos contra o estereótipo que cultivam da chamada "arte contemporânea". Parecem ter surgido de uma máquina do tempo com roupas esquisitas e perucas para defenderem os ideais napoleônicos contra a vinda da Corte Real Portuguesa para o Brasil. De modo que Debret continua sendo mais contemporâneo nosso do que alguns críticos vivos. É o mesmo velho sinal de que o mundo contemporâneo não é permeável a si mesmo e que o diabo social está sempre de costas para o seu próprio rabo.
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Sim que os cinco sentidos são parte do campo das possibilidades de caracterização de diferenças. É com eles que posso notar o "outro", isto é, o que (e quem) se difere de mim. E a certeza de que tais sentidos são uma obviedade os torna assunto sem interesse, pois sobrevivemos muito bem sem questioná-los. Nossos órgãos de apreensão crescem especificados, bem antes de o sujeito nascer "para si" e notar que sua mãozinha e a de seus pais, quando se tocam, são distintas. De fato, é normal distinguimos empiricamente a diferença de origem entre os estímulos nervosos do tato, do olfato etc.
Porém, na medida em que essa obviedade é evocada por uma parcela da crítica de arte mais conservadora e do senso comum para condenação da "arte contemporânea", vale abordá-la um pouco. Pois a divisão presente entre as linguagens artísticas lança mão dessas diferenças naturais para naturalizar formas de expressão humanas desenvolvidas ao longo de milênios, ou seja, radicalmente culturais (e não naturais). O mesmo ocorre com distinções baseadas em artes "temporais" e "espaciais", típicas da velha estética de Lessing, às vezes repetidas ipsis literis nos dias de hoje.
Parece crível que uma forte pretensão de verdade tenha levado à assimilação entre as formas de expressão em arte e a lógica "natural" dos membros da sensibilidade (artes visuais = espaço + visão; música = tempo + audição; teatro = drama + visão e audição…). É como se estabelecer a arte em bases análogas ao legado natural a tornasse herdeira de formas "substanciais", de modo a situá-la na ordem direta de um suposto "espírito universal". Claramente, assim se encontra uma perigosa justificação instantânea e mesmo uma distorção da natureza, cuja vitalidade não se desenvolve segundo esse teorema lógico.
No campo da comunicação social, pode-se argumentar que a redução excessiva da linguagem tenha mais eficácia do que a sua abertura. Entretanto, quantas possibilidades de expressão se perdem ao tentarmos especializar, determinar e enclausurar o discurso? Um dos esforços que lograram êxito na modernidade foi o de abandonar a sobrecarga dos códigos instituídos para deixar que relações de saber originárias entrassem na arte. Na música, não foi só Villa-Lobos que, ao romper com o tonalismo estrito (da tradição européia), pôde realizar a Tocata das Bachianas n. 2, o Trenzinho Caipira. Stravinsky, outro inquieto, havia ritualizado radicalmente as relações rítmicas, retomando o que há de corporalmente incitante no som. E a prosa oswaldiana aceita os limites em que o texto, a expressão verbal, pode desaparecer, para exprimir-se por semelhanças; a forma do sentimento de desnorteio dos personagens, por exemplo, se apossa do texto, e cria climas que não são da ordem da palavra. Enquanto um Stockhausen, injustamente massacrado por todos os saudosistas, afirma radicalmente a sonoridade como elemento do espaço ao articular mais de uma orquestra em performance simultânea em palcos distintos. Só para citar rapidamente alguns exemplos…
Tratam-se de rupturas com as "expressões" submetidas a códigos estritamente elaborados pela tradição, esses que foram ensinados e transmitidos dentro de um edifício ideológico transformado cuidadosamente em teoria, na mesma linha das exigências de classificação de São Tomás de Aquino. Pode-se identificar um excesso canônico no desenvolvimento da música tonal, cujo desenvolvimento foi dependente do discernimento de monges católicos, mesmo que, felizmente, isso não dê conta da espontaneidade da invenção popular, evitada pela erudição monástica. Mas, se o próprio tonalismo se situa na incorporação de elementos provindos da música profana ao canto monástico, podemos questionar a ambição à pureza.
É com o esforço de um poder central, porém, que as gramáticas e normas de comunicação podem ser publicadas e eternizadas quando os meios de difusão ideológica e circulação de escritos, por exemplo, são dispendiosos demais para serem exercidos pelo povo. A isso se deve um peso maior das forças conservadoras, mesmo que existam dissensões e discursos minoritários. Algo semelhante pode ser notado hoje em dia nas concessões de TV e rádio, ainda influenciadas em grande escala pela tentativa de garantir um domínio ideológico central. Nesse sentido, se aprendemos em libretos como a TV e a escola ("ideológicos", isto é, "dominantes"), a questão passa a ser a seguinte: ao pretender expressar-se, quem se expressa é de fato o chamado "criador"? Ou há uma gama de expressões já contidas nos códigos a que o sujeito foi submetido? Incluindo aí as limitações e proibições relativas aos "cinco sentidos" e às velhas "formas de expressão"?
A pergunta não é nova, mas não é demais lembrá-la. Além disso, seu excesso de simplicidade pode ter sido um fator para ter sido ocultada ou passado em branco e que somente tenha recebido a atenção que merece durante o séc. XX. Até hoje, a Igreja e o Estado são congratulados pelos livros de história vendidos aos alunos das nossas escolas, pois ambos foram patronos da arte para dela tirar partido com a invenção de estilos oficiais. Visão semelhante é propagada por críticos de diversas origens, dos mais engajados até os que nunca entraram em uma sala de cinema ou leram um livro, com ataques aristocráticos contra o estereótipo que cultivam da chamada "arte contemporânea". Parecem ter surgido de uma máquina do tempo com roupas esquisitas e perucas para defenderem os ideais napoleônicos contra a vinda da Corte Real Portuguesa para o Brasil. De modo que Debret continua sendo mais contemporâneo nosso do que alguns críticos vivos. É o mesmo velho sinal de que o mundo contemporâneo não é permeável a si mesmo e que o diabo social está sempre de costas para o seu próprio rabo.