"Sus, tomemos um escritor deveras límpido e irrepreensível. Não vale a pena submeter a um exame geral exatamente este ponto: se, em poesia e prosa, devemos preferir uma grandeza com alguns defeitos, ou uma mediocridade correta, em tudo sã e impecável?" (LONGINO. Do Sublime).
Certo dia me disseram que uma obra de arte tem que ser bela. "A beleza é a harmonia de todas as partes". Quantas pessoas se identificam com essa frase um tanto sintática? Dizei-me, então: "é nisso que está a perfeição de sua construção, pois é sintática e além disso é simples!". Respondo que quem engana estará fora da República, e essa simplicidade é forja da falácia.
Não quero dizer que existam frases assintáticas, mas que, como se pode ouvir em alguma música do Radiohead, o que se sente nem sempre existe. Harmonia, por exemplo, é algo um tanto fugidio, miragem etílica. No pós-tudo não há um impulso que, descoberto, é omitido em nome da forma sensível e da dosagem equilibrada. Por exemplo: a pobreza foi um tema não-grego, desarmônico, para Portinari, mas não há muito tempo, visitei à retrospectiva do artista plástico Milton Ribeiro, e lá estava a pobreza harmonizada. Algo pareceu conraditório: estudos do expressionismo.
Tanto o expressionismo quanto o meio, ou a mediação, marxista, podem ser condenados e executados sem merecimento. Todo meio é ignorância, assim é aceito na ligação fácil que se faz entre a beleza e os clássicos. Esse desconhecimento, entretanto, é uma das verdades do trabalho. Se atribuem ao modelado por veladuras status de técnica suprema, qual seria o motivo? Será que foi ingênuo o italiano que pensou que seu grande painel não era um rascunho, mas uma Obra com "O" maiúsculo?
Dedicar-se ao trabalho de imitação e ao ensinamento não gera equilíbrio, nem harmonia, a não ser em relação a uma estrutura singular. Assim, no momento em que colocamos na boca dos clássicos, e nossa, uma leveza atribuída tanto a eles quanto a Salvador Dali, lemos dos nossos antigos algo que demonstra nossa própria alienação quanto à fantasia surrealista. "Suponhamos que um pintor entendesse de ligar a uma cabeça humana um pescoço de cavalo, ajuntar membros de toda procedência e cobri-los de pernas variegadas, de sorte que a figura, de mulher formosa em cima, acabasse num hediondo peixe preto; entrados para ver o quadro, meus amigos, vocês conteriam o riso? Creiam-me, Pisões, bem parecido com um quadro assim seria um livro onde se fantasiassem formas sem consistência, quais sonhos de enfermo, de maneira que o pé e a cabeça não se combianssem num ser uno." (HORÁCIO. Arte poética). Eis a estrutura ora refutada, ora ensejada, à qual se costuma atribuir uníssono que não pode ser, senão, nosso mesmo, o público leigo dos OUTROS, distantes e mortos, nos quais só vemos espelho e contigüidade.
Todavia, de fato, a estrutura daquele trabalho ligado ao saber clássico, hoje, parece tão longe quanto os poetas latinos e o ditirambo. Em lugar desse, temos o baile funk, mas também conhecimento de várias verdades. Admite-se, por exemplo que, em lugar da veladura finíssima e delicada, metam-se empastos grossos, suculentos e desconformes e, em lugar da dedicação ao aprendizado da fineza, o afinco ao estudo da grossura. Todavia, o artista, nos dois casos foi considerado legítimo para expressar sentimentos da alma por repetir procedimentos. Tanta expressão não estaria, ao contrário, justamente naquilo que não é considerado? À margem corre o erro, a "grandeza com alguns defeitos" de um antigo anônimo, marginal, que hoje chamam de Longino.
Já que a perfeição, a beleza e a harmonia são vistas simultaneamente de pontos de vista tão diversos, poderíamos dizer: trabalhar é ser ignorante. Hoje, os croquis de Leonardo são expostos em grandes museus e em galerias internacionais, atraindo enorme quantidade de público leigo afeito à beleza clássica estratificada no meio de um sistema sem ordem e massificado. Justamente esses rascunhos subtraídos quando a pintura não tem furos, apenas é imagem convexa, são a prova do lesbianismo e da imperfeição enrustidos na idealização estéril, por mais prazerosos que sejam.
sábado, maio 29, 2004
Postado por allan de lana às 5:48 PM
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