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allan de lana

domingo, junho 25, 2006

desço a barra de rolagem e vejo uma fotografia de um quadro, que não mostra dele senão um mínimo detalhe de aproximadamente 6 x 8 cm. Aquela visão é possível apenas ao mirante do Jacroá. Contemplando a altura das montanhas escorregamos até os vales onde há lagoas - são umas doze ao todo, das quais na imagem que temos aparecem três, encobertas pela neblina da distância, bem a uns 20 Km dali. O acesso é por Marliéria, cidade cuja história nos conta ter sido fundada em 1865, por Guido Marlière, um grande visionário francês. Guido teria subido ao pico de uma montanha pouco íngrime à cavalo. Imagino que sua mãe o acompanhava a partir de um porta-retratos de ouro em forma de pêndulo, guardado no bolso, às vezes confundido com o relógio prateado do desbravador! No cimo, então, esse homem crédulo e benfeitor inflou o diafrágma e arrepiou os supercílios erguendo uma espada que cintilou raios emocionados por todo o seu peito. Naquela tarde porém nublava. Sua vontade maior era insuflar em tudo o Deus, num único ato de heroísmo que reluzisse até os píncaros das mais remotas cabanas, na alma de todos os banhistas das doze e das outras tantas lagoas de água quente. Quem sabe chegaria seu clamor até o organismo das piranhas que também nadavam em nosso detalhe de pintura!!! Desse espírito imbuído, liberou com verves aquele espanto acumulado em suas botas enquanto contemplava os vales se tornarem vales na medida em que galopava para arribar tantas montanhas, que por sua vez iam virando matas. Foi assim que, arrepiado e sem muito fôlego, pensou e sentiu emoção no corpo, enquanto gritava para um mundo inteiro de carrapatos e cobras que o cercava: "Je croix!!!". Um século se passou e algum administrador benevolente homenageou a cidade dando o nome de seu fundador a toda a região alcançada pelo grito, que teve, sem dúvida, uma ressonância débil, fatigada. Depois, um prefeito aproveitou a sabedoria popular para nomear uma área de um monte, muito bem localizada para visagens panorâmicas, de "Pico do Jacroá" - uma transcrição refinada, do berro de Guido, para o bom e velho português mineiro.

À caminho do Pico, uma exuberante vegetação pode ser contemplada sob a frescura de nichos e corredores à sombra, entre paredes levemente desbarrancadas de uma montanha e árvores com diferentes espaçamentos e alturas. O único inconveniente é que, enquanto caminhamos 5 Km de subida, acabamos por suar e reter toda uma camada da estrada de terra em nossa pele a cada vez que um automóvel guiado sem a devida cortesia e educação passa veloz. Mas nada fustiga a alegria de ver espíritos solitários aproximarem-se lentamente, como se geradas do barro e, riscando o espaço, remodelando-o com um simples movimento de caminhada, levarem a emanações de magnetismo. Os corpos, quando se aproximam assim com esse flúido cósmico, realmente vibram e remodelam a posição de suas partículas. Toda sensibilidade renova-se e curva-se, tomando a forma de uma saudação receptiva e curiosa. Toda a natureza, porém, tonifica esse mundo. Nunca me esquecerei daqueles senhores da volúpia e da leveza no caminhar, revestidos por um aveludamento verde-vessie com luz refletida em azul turquesa surgido de um suculento rio ou de uma lagoa cheia de piranhas, que agora creio ser a verdadeira mistura de cores da Vitória de Samotrácia, uma vez que elucidam o mesmo espírito dos ventos. Exitaria em chamá-los de marimbondos, uma vez que isso poderia instigar certos preconceitos. Comportavam-se dóceis e cônscios dos limites territoriais de sua doçura, além de parecerem ter um aguçada visão, o que não existe na maioria dos marimbondos.

Naquela manhã em que eu ia, solitariamente, pisando a terra para regressar do Jacroá às casas de minhas tias em Marliéria, fruí da presença de tais seres com a confiança que se tem em guardiões de algo a intuir-se como a queda de uma pétala a partir das nuvens. Intuição apenas, cujo ímpeto à captura nos envenenaria, trazendo o deleite entorpecente da morte e alucinações idílicas - essa paz que salivamos ao contemplar um ser cujo caminhar é quase um pouso e que assim também se ergue leve no ar enquanto anda com as patas. Sua mecânica é limitada por um cânone estético: nenhum movimento brusco com as asas, para mostrá-las plenamente. Veladuras de vessie trespassadas por nervos em três níveis básicos de espessura, o grosso, o fino e o finíssimo, para os quais avançam e obscurecem, desde suas proximidades, tons de azul da prússia. Arremate alaranjado sobre rugas de um extremo que já quase não se liga ao corpo, doando-se aos humores do vento, como uns rendados tecidos por uma criança de quem a agulha exita e escorrega. Por fim, o movimento galante, cuja cadência às vezes se altera, mas se mantém nos limites do apreensível, de modo que um desenhista animador muito aprenderia observando-lhe por horas. Para mostrar toda exuberância, o movimento não é suficiente para altos vôos, assim os guardiões levitam como espíritos, mantendo suas patas distantes da base o suficiente para que também caminhem, contanto que as asas estejam prestes a transportar suas almas por destinos virtuosos. Às vezes eu me convencia de que toda aquela natureza e o caminho que a cortava eram suspensos pela imponência desses habitantes, além de seguros por suas patas e conduzidos no alto por suas asas!!!

Alguns cruzavam em minha frente, tranqüilos, mas fluíam em sentido contrário quando eu me aproximava.



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hoje é segunda-feira. Se bem que já se foram as 24 horas - é terça, mas vivo ainda o meu astral de hoje, para o qual ainda é uma segunda-feira.

... ou talvez eu me engane: nada melhor do que uma terça para pensar nos prazeres e lamúrias ao longe, como se já nos tivessem pertencido um dia, num sábado, talvez. Domingo...

é certo, porém, que esse conflito não mudará a verdade sobre o dia de hoje. Ele não existe e não me convencerá, nem sequer um perspicaz, da existência dos dias! Assim também são os diários: podemos acumular impressões como se todas elas ocorressem no domingo. Riscamos as seqüências de um a trinta e um, a trinta, a vinte e oito ou nove ao longo das páginas, usando borracha e "liquid-paper", destituímos-nas das orelhas da agenda em todo um mês e mais trezentos dias - são o mesmo e único domingo.

a vida sem os dias é como um alongamento ao acordar de manhã sob uma ducha quente. Sentimos que nossos poros refazem-se levemente, como se abrissem apenas para inflarem-se da disposição de que a luz os mantenham aquecidos e em expansão. É quando dilatamos o nosso espírito de modo a resultar em leves assanhamentos capilares e libidinosos - epifania tântrica.

os dias não passam de simulação incronguente do ritmo circadiano - os ciclos de estações, de dias e noites, de repetições astrais circulares... O que produziram de mais fantástico foi uma peripécia involuntária. Abro a Poética de Aristóteles, que me diz ser a peripécia uma ação que evolui para o seu contrário. Teríamos os dias como registro de ciclos naturais, mas hoje perduram como a marca de esquecimento dos fatos e dos sentidos: acreditamos naquilo que os relógios nos informam e o ciclo perde sua positividade para o diagrama. É assim que vive um cidadão comum.

ora, mas comecei a declarar-me um nostálgico, quando lembrei de caluniar os dias... Mas para mim não há nostalgia sem pensar no que nos tornamos. Porém, a minha não tem nada que reivindique o passado, esse tempo que construo como sinônimo do último domingo, quando tive um dos clímax de uma crise sentimental que se vem arrastando, não por ter-me apaixonado, mas por ter saído dos esquadros bem traçados de um Cronos robótico.

pena que, diante de tantos devaneios meus, chegou a hora de um descanso, motivo pelo qual não irei explorar o assunto principal que propus no início. Objeta-me: "sair assim de sopetão deixará espaços para inúmeras indagações e até conclusões!" e "concluir é um dever moral!". Treplico: quando o sono ataca bem determinadamente, a vaidade e a moral são desligados de modo tão perfeito que sonhamos, com a liberdade dos ventos.




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o que relato em 5 minutos, que é o tempo desse número teatral - um monólogo? Não sei porque, sempre me sinto pendurado por uma linha finíssima que liga uma gaveta de rasgados a um destino em breu. Um fio do qual sinto, pendurado pela haste craniana perfurada de fora a fora, os seus extremos perdidos, sem avistá-los: sei por onde vêm e vão, sinto a sua tônica toda vez que uma paixão me interroga. E uma vez ela mesma me fitava com uma chave-de-fenda enquanto eu acordava num lugar estranho, então pensei nas nossas posses: há algo que possui mutuamente aqueles que se apaixonam e que pode ser levado às últimas conseqüências, pois o amor é um exagero. E se ela me parafusasse na parede? Era de fato o que premeditava e o desfecho que teria nossa história se eu estivesse talvez um pouco mais sujeito e desprotegido. Parafusar-me-ia e apontaria ao próximo a dormir em seu leito: "olha, um quadro sentimental e trágico, cujos efeitos de luz e espaço foram baseados em sonho". Quem discordaria dessa forma de amar? Afirmo que é legítima e verdadeira, por mais que se enrosque em parafusos e, talvez, possamos dizer, seja a forma autoritária de corresponder à seguinte espécie de abertura de espírito, que é a minha: "amo a quem me fizer de luva". Por esse caminho, seria autoritário transformar o outro em uma pele legítima arrancada de um urso ou em um quadro sinistro, pois ao escolher tal caminho pela razão e pela comodidade, deve-se perguntar: "quantos lados tem uma luva e quantas mãos ela simula?".

os 5 minutos se transformaram em 15... Ah, são tantos rasgados!

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