crec
ruth souza, 2002. fotografia.
ruth conta que quando criança escrevia seu nome nas largas folhas da sua árvore de infância, que hoje permanece no quintal de seus pais em sua antiga residência. folhas secam e caem - que sentido nisso? (não responderemos).
repetir a ação - colher o próprio nome no corpo seco, despojado e... um cadáver crocante, como o esqueleto de um sacrificado. ruth conta uma anedota que aprendera com sua avó, em que o cadáver-raiz desprende-se como pássaro - seria esse o percurso ascendente das folhas com seu nome próprio?
para josé miguel wisnik (ao aludir, em 'o som e o sentido', à pesquisa de marius schneider), o ritual de sacrifício mostra as permissões e interdições de uma sociedade onde sofrer e purificar fazem parte de uma mesma e feliz celebração - o sacrificado transforma-se em instrumentos musicais de mediação divina (seu couro, seus ossos ...) e participa da energia cósmica universal.
o seu cadáver é sonoro, como as folhas na sua crocomecânica monocórdia - sua nota variante e inconclusa varia de timbre e intensidade, porém é sempre a mesma. esse cadáver no qual o símbolo não pode fixar-se e que, enfim, é antes um corpo em transe que de tempos em tempos retorna, como a ave enterrada por uma criança e transportada pela raiz da folha novamente até as nuvens e o Sol, o vento e a mesma terra.
há cerca de dois meses, ruth abriu um ambiente construído em três cômodos da casa localizada nos fundos do quintal de seus pais, no Park Way (brasília-df). todo o chão do ambiente foi coberto de folhas secas e, entre vários objetos que lembram pessoas queridas, remetia àquela memória do corpo um dia despojado mas, outra vez, vivente.
a ordem do que vimos foi construída com o zelo daquele que arruma o seu quarto e guarda muito bem as memórias de prazer, as quais podem tornar-se o objeto de uma vida muito íntima. para compreendermos sua natureza, diremos que ela está sempre muito próxima daquele trauma da vida ou da memória que furou todo bloqueio da racionalidade para irromper em nascimento incontido, e um nascimento incessantemente recorrido em lembranças - essas, fragmentárias e jamais conclusas.
dentro de um armário, no segundo cômodo do ambiente-instalação em que entramos, havia um álbum de fotos. Ana estava lá, pequena e querida. guardada e protegida na escuridão negra de um interior em que sua imagem é sempre infância, nunca é Ana.
por um lado, justo a alegria da concepção ou o feliz amor como lembrança corporal, isto é, concretização dos anseios de uma família. por outro, a profunda ausência que nos violenta, sempre reposta como imagem impossível - uma totalidade plana e opaca. o nascimento é um eco sem fim entre essas duas paixões. o prazer da vida aqui é mostrado, portanto, em uma relação ambivalente com a dor, figura de sublimação e de investimento energético simultâneos.
lembramos que nesse aspecto o som é fundamental. uma boneca gira e faz ressoar "yesterday" de uma caixinha de música. a barra do seu pequeno vestido azul, usado por Ana em suas fotos, repete, a cada volta, o contato seco com as folhas, nas quais arrasta-se numa idêntica e constante pulsação.
em dois ambientes encontramos camas. eles são bem distintos. porém, nos parece que as germinações de grãos de feijão na primeira cama e o ramster que deveria mover um aparelho foto-cinético de ruth, ao pé da segunda, instauram a tentativa de separação entre vida e morte.
seria necessário ligar esses cômodos como núcleos anamórficos ou instáveis para presenciarmos a figuração total do corpo-memória que intuímos. fazendo esse esforço de união é que podemos entrever um deslocamento simbólico entre objetos de desejo e a volubilidade do sentido familiar, sempre lembrança - afânise e presença.
allan de lana, copa e folhas de amendoeira. brasília - altura da 208 sul, próximo ao eixo monumental.
Nenhum comentário:
Postar um comentário