Além da Orelha
Quem pariu Mateus que o embale, andam dizendo por aí. Em uma alusão ao amor próprio, é possível declarar-se o não comprometimento com o problema dos outros, como faria um João-Sem-Braço. Pensar olhando em torno e voltar a si, por outro lado, é um exercício que demonstra o contrário.
Olhar em torno significa notar o próximo. Notar o próximo significa compreender as relações de diferença entre ele e o meio em que vive. Voltar a si faz parte desse saber sensível, no qual está investido um certo conhecimento de causa. Há sempre uma pequena história envolvida por várias outras.
O isolamento de um fato conduz a análises postiças. Um exemplo é o silogismo "Van Gogh era artista habilidoso; sua esquizofrenia influenciou sua técnica e, além disso, ele morreu pobre; portanto todo artista habilidoso é esquizofrênico e morre na sarjeta". Entrementes, pode-se avaliar o exemplo sem excluir essa opinião equivocada. Quem crê também é história, por fazer parte do grupo dos que agem com determinado conhecimento e convicção.
Não é dispensável o caso, pois acreditar na seqüela criadora é estar com ela. A idéia bastante difundida e Romântica de que o artista não pode enfrentar a sociedade ou compactuar com ela, afinal, tornou-se um axioma um tanto quanto teso e intocável. Um Courbet, ainda hoje, vez ou outra é chamado de um bruto por não camuflar sua atitude escondendo a verdade objetiva da pintura, nem ignorar a força política contida nas artes.
Essa tísica epistemológica é, a bem verdade, a realidade ilusória à qual os cidadãos, e mesmo artistas, puritanos, fiéis e crédulos, fizeram suas oferendas. E, ainda, um campo de minas explosivas é o assunto da loucura, porque os que crêem piamente não julgam suas convicções, mas os que duvidam, por simplesmente citarem a loucura, correm o risco de incorrerem em preconceito, em seção e isolamento.
Afinal, quem pariu a loucura? Quem pariu a idéia de que faria a loucura bem às artes e as artes, bem à loucura? Parece que está-se falando de uma espécie de "Mateus sem pai". A idéia da loucura, que vidia a cêra no ouvido de Van Gogh e para a qual se pode olhar atualmente com uma certa distância, essa, sim, aparenta fraqueza. Principalmente, quando a reação dissociativa, própria dos que surtam em manias, parece formar os princípios fundamentais de uma sociedade mundializada.
Dizia Foucault que a loucura é um mecanismo de exclusão, não feito pelos maníacos, mas pelos que a diagnosticam. Uma breve beliscada com o olhar em uma das 300.000 obras do museu de imagens do inconsciente é capaz de arrancar comentários piedosos de multidões. Um psiquiatra místico despeja sua lista incessante de mitos, um espectador de Hebe diz que é uma gracinha. Todos tratam, enfim, de classificar quem produziu a obra, apressadamente, como desajustado, sobrenatural, frágil ou digno de pena. Até mesmo concedem, do alto de sua autoridade, autorização para que um louco possa ser Artista (com A maiúsculo, ainda por cima), coisa sobre a qual nada, a não ser a milagrosa OMB, e mesmo assim no campo restrito da música, conseguiu advogar. Mais gritante: alguns estudiosos da produção técnica criativa de psicóticos chegam ao descalabro ufanista de dizerem que somente os loucos são merecedores de tal adjetivo ou Título. Afinal, como aceitar um Fernando Diniz, talvez aberração, talvez um ET, talvez Deus?
Dessa maneira, um domínio, que felizmente tem sido desmanchado aos poucos, dentro da verdade aceita, prescreve o que pode ou não ser normal e ouvido. Assim, pessoas criadoras e originais, compositoras de novos e infinitos sistemas de raciocínio e subsistência, estiveram e continuam, juntamente com o falso e o feio, exiladas por longa data. Irônico também é ver aparecer primeiro suas influências, depois o seu trabalho.
O "exotismo" modernista, tão caro à arte soterrada ou enjaulada (fósseis e coleções de trabalhos de internos), levou para o mundo uma fagulha de algo estranho e inverossímil. Hoje se pode enxergar por entre a névoa uma dissociação neurótica se apossar de uma velha episteme, que é nada mais do que a parideira. Dissociar é criar defesas e produzir ilusões diante do que se aparenta intransponível ou ameaçador. Eis que o parido, de tão grande, não pode ser embalado, é intransponível e impossível de ninar, então, presenciamos um momento culminante, em que a falência dessa instituição em conserva vai ocorrendo.
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Esse texto foi oferecido por:
"Melhor um livro na mão do que dois mofando".
domingo, fevereiro 08, 2004
Postado por allan de lana às 4:33 PM
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