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allan de lana

terça-feira, fevereiro 03, 2004

O texto abaixo tem um oferecimento de
"Melhor um livro na mão do que dois mofando".

O Caso Rembrandt
Rembrandt subiu na vida e caiu na morte. É fútil, o anúncio, mas menciona o caso mais impressionante dentre os pintores que se tornaram celebridades mundialmente bajuladas (e como dizer esse "mundialmente" em termos de tempo? Talvez baste um eternamente). Em sua obra, atada simultaneamente ao plano pictórico e ao real, como também à vida, foram antecipados os aspectos mais relevantes das artes desenvolvidas no século XX.

Se você disser que eu desafino, amor, dissonante, lhe digo, parece ser a composição ilusória com a qual Rembrandt conduz o espectador ao engano. Como se a sétima maior, tão bem disposta em certa harmonia, não ressonasse em tensão irreconciliável aos ouvidos mas, sutilmente, convidasse os instintos a perceberem um novo acorde, preparando-os sempre para um devir.

SinEsteticamente, há mesmo música na imagem? Existe mesmo cadência nas telas de Rembrandt? Responderia alguém que não, que leu n'algum folheto, jornal ou ensaio que música é arte dos sons a ser entendida primordialmente em sua duração. As artes visuais seriam, assim, artes do espaço. Não só Rembrandt contradiz isso, como também desmente que a arte seja a expressão pura do espírito do artista semideus. Sua história mesma descredita a hipótese de que arte é, por outro lado, narrativa institucionalista. Acrescento que não existem, também, as tais "artes integradas". Arte é integrada por excelência! Por último, Rembrandt desmente que artista bom seja artista morto.

O pintor nasceu em Leiden, Holanda, de família humilde, tendo viajado a estudos para Amsterdã e retornado à cidade natal. A partir desse momento, se torna rapidamente um homem rico e assediado. Não só pelo seu talento, mas pela sua "habilidosa" esposa Saskia, mulher de família nobre, consegue suceder ótimas vendas e recebe encomendas diversas. O sucesso dessa empreitada não está, entretanto, como muitos espectadores de Hebe imaginariam, na aliança com a alta sociedade, mas no não abandono da pesquisa, da dúvida, da investigação, da música.

Como um compositor de uma seqüência harmônica, o pintor compunha cada um de seus elementos, manipulava a composição e a dispunha de modo impossível, mas verossímil. "A Ronda Noturna", encomendada pelo Capitão Franz Banning Cocq, mostra "A Mudança de Guarda da Companhia do Capitão Frans Banning Cocq" (título original) em uma imagem móvel onde se notam movimentos dos militares e espectadores. Um músico levantou o braço e o descerá rumo ao tambor. Um guarda deu um tiro e a guarda está se posicionando. Esse gerúndio eterno é o acontecimento temporal. Não se vêm movimentos sem que exista o tempo e, então, a harmonia combinada com o tempo, se forem aceitos os argumentos dos mais conservadores, produz, literalmente, música. Rembrandt também reintroduziu a pintura com as cores todas dessaturadas e sem diferenciação significativa entre as tonalidades dos diversos planos, assim como Miles Davis sugeriu no século XX uma música com poucas notas na melodia.

O Capitão Cocq, um bruto idiota de um tipo bastante proliferado e chato, um intransigente diante da "piroca de Ulisses" criada por ele mesmo, "como quem vê sacrafuncho em cara de cavalo" (diz minha mãe), desfez a encomenda de uma das obras mais complexas das artes mundiais. Seria ela pintura? Seria ela música? Ora, imagem mais movimento é igual a cinema!!! E por nada nesse mundo poderemos dizer, portanto, que cada um em seu compartimento. Não faz sentido aclamar uma mídia em detrimento de outra ou validar um sentido em detrimento de outros.

Esse pintor por excelência, tendo explorado a romântica pintura, de coisas fugidias, representativas do indizível, por suas manchas inimigas da natureza, indutoras do intelecto e do conhecimento anterior, estava já declinando. Perdera três filhos. Sáskia morrera e, nesse ínterim, o talentoso homem somente ganhara a "piroca de Ulisses", quase um Oscar de idiotia, por ter sido complexo e profundo.

Nas profundezas de sua profundidade, após ter até mesmo galanteado e comido a babá do único filho restante, o aclamado artista de (de onde mesmo?) Leiden declina ao ser enxotado vagarosa e vilmente dos círculos pomposos de convivas. Outrossim, não é nessa roleta ostentosa e ignota que reside sua eternidade, mas no fato de que jamais abandonou o tempo (seja a perenidade ou a fugidez), os interstícios, nem a verdade daquilo para quê estava a serviço. Sua pintura nasceu para a superfície plana e para a sabedoria dos que a olham. Sua gravura jamais negou a ação do buril ou do ponta-seca, de tal sorte que, ao mostrar a cena da deposição de Cristo mostra também a ação própria e a dos assistentes no ateliê ao violentarem a chapa. Assim, estava a serviço da história, do ser, da inteligência e da autoria.

Depois de ter subido na vida, caiu no esquecimento dos comerciantes ingratos. Seu enterro não foi assistido. Sua pecúnia, não a via mais (e agora Rembrandt?). Duas vezes rico, entretanto, engana ainda a quem se engana, desafia o positivismo televisivo e a imagem em movimento. Coloca sob suspeita o gosto e a inteligência dos financiadores das artes. Diz para os sabidões e arautos passivos Heberianos: cada coisa fora de tempo; cada um fora de seu lugar. Que gracinha é a lhama que te cuspiu!

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