homenagem ao 2347º aniversário de Epicuro
nascido em Atenas, em janeiro de 341 a.C., epicuro foi para Samos ainda novo e lá conheceu o platonismo, diante do qual não pareceu entusiasmar-se. aos 14 conhece o pensamento de demócrito por Nausifano. efebo, volta a Atenas em 323 a.C. para tornar-se militar. a cidade havia sido derrotada pela Macedônia, sua família, que, ao que se apregoa, fora nobre, perdera então suas terras. Epicuro vai a Colofônio em busca do pai e ali aprofunda-se em uma literatura tradicional que nota não ter mais crédito espiritual entre os seus contemporâneos. Na introdução dos Pensamentos por Johannes Mewaldt (Editora Martin Claret, 2006), mostra-se uma gama de pensamentos astrológicos aos quais se atribui um pessimismo de época, vinculado, ao que nos parece, ao humanismo então predominante e à decadência que representou a derrota de Atenas e influiu na depressão daquele humanismo. porém, a vacina de Epicuro que, em nosso trocadilho, os cínicos (do grego kúón, kunós, cão, pelo latim cynìcus - Dicionário Houaiss) não tomaram - apesar de, segundo relatos, terem vivido com verdadeiro e impressionante desapego - foi o atomismo de Demócrito. a concepção de um universo além e maior que as paixões humanas fornece ao epicurismo uma chave da ataraxia, isto é, da vida feliz no conhecimento e no exercício da razão.
o atomismo de Demócrito (circa 460-370 a.C.) foi desenvolvido a partir dos ensinamentos de seu mestre Leucipo. nessa doutrina, nada nasce a partir do nada e os mundos são numericamente ilimitados, perecíveis e composíveis. o que forma primordial e naturalmente esses mundos são os átomos e o espaço vazio. segundo a doxografia, os átomos têm grandeza e forma. a essas duas características Epicuro acrescentou o peso, que faria os corpos moverem-se. os átomos não seriam divisíveis, porém os corpos que compõem, sim. para Demócrito a natureza dos átomos é estática, o o seu movimento resultaria do choque entre corpos e do impulso decorrente.
o universo de Epicuro é igualmente atômico e sua grandeza vai muito além da capacidade de apreensão do ser humano, que não experimenta seus extremos, e só poderia intuir, assim, a sua infinitude. mas seria um dever desse ser tão pequeno criar as condições de sua felicidade, o que faz do epicurismo um eudemonismo. ele opõe-se a Demócrito no ponto em que este considera que se estamos apartados da verdade, devido à diversidade dos átomos e imagens que só afluem-nos como percepção. Epicuro quer infalíveis os órgãos sensoriais. porém, nas duas concepções, o conhecimento que deve guiar a ordem do espírito está ligado às coisas por meio da sensibilidade. a sensibilidade fornece um tipo de dado empírico dos antigos. a partir do conhecimento dela a vida pode ser guiada pelo prazer, à felicidade (euthimia demócrita). a hedoné, ou prazer, pode ser interpretada como ausência de dor que proporciona o gozo pleno da existência. o epicureu, porém, é o oposto de um promíscuo, o que ele procede é a escolha dos prazeres que lhe são adequados, a partir do conhecimento da natureza em sua totalidade. esse conhecimento seria dado satisfatoriamente pela física atomista.
nessa doutrina, o movimento dos átomos lhes é constante e as qualidades desse movimento têm limite. mas a diversidade de formas atômicas é infinita e sua minúscula dimensão inapreensível. os átomos podem conectar-se e desvencilhar-se, quando são consoantes respectivamente à vida ou à morte.
quanto à vida, o ser humano tem a alma idêntica ao corpo e ao desfazer-se, termina qualquer possibilidade de perpetuação espiritual. o além é uma criação maluca, pois é inconcebível uma existência sem corpos.
a isso parece conectar-se André Comte-Sponville na sua noção de "alegre desespero". pois se a constatação da morte definitiva assustaria, dela Epicuro faz uma justificativa para uma felicidade, assim como a de Demócrito e Leucipo, calcada na tranqüilidade do espírito que nada deve a nenhum além. não há nada com que se exasperar, não haverá punição e os deuses não interferem na vida ou na morte humana, vivem "na sua", no que Epicuro chamou de entremundo.
essa doutrina parece ter chegado até nós graças ao poema latino De Rerum Natura, de Lucrécio, que influenciou sobretudo Virgílio e Horácio. a sua retomada deveu-se à biografia do filósofo publicada por Diógenes Laércio e à obra Epicurea, de Herman Usener.
há ainda outro modo pelo qual Epicuro nos chega, pois milhares dos seus átomos dissipados ou outros semelhantes aos seus, constitu-nos e temos com ele uma ligação cósmica, assim como todos os pensadores da felicidade ou do rancor que o sucederam. isso é uma felicidade e estamos de parabéns por mais esse aniversário de Epicuro! Em breve, registraremos aqui uma hipótese de sua festa no Grande Jardim filosófico do Planalto Central da Atenas brasiliense, rodeado de amigos. a festa será aqui, neste mesmo post do dia sete de janeiro (que não é o dia exato do aniversário).
Bibliografia básica:
EPICURO. Pensamentos. São Paulo: Martin Claret, 2006. (Coleção Obra Prima de Cada Autor).
BORNHEIM, Gerd A. (Org.). Os filósofos Pré-Socráticos. 12ª ed. São Paulo: Cultrix, 2003.
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jardim epicureu
é difícil conservar a idéia do jardim de Epicuro nas mentalidades de hoje em dia. um dos motivos principais - além da distância cultural entre nós e ele e das conseqüências da globalização que põem em cheque as fronteiras do público e do privado, da amizade e do desconhecimento - é o excesso afirmativo da doutrina cristã que impregna o pensamento ocidental. é preciso abdicar da idéia de um Deus criador se quisermos pensar em um jardim epicureu, em que os prazeres não podem ser isolados nem em um órgão, nem muito menos nas mãos de um deus.
à diferença de um jardim da idade média, no qual encontra-se a idéia de paraíso (palavra persa que, segundo Kenneth Clark, significa espaço cercado por muros) em que Deus pode ser visto nas pequenas coisas, nos seres menores, o jardim de Epicuro evoca a sabedoria do corpo e do espírito. Clark fala dos jardins de Siena pintados no séc. XII que neles os sujeitos colocava-se entre uma jornada dentro da natureza e uma contenção diante dos perigos de corrupção da Ordem de Deus. daí serem os jardins delimitados, cercados, livrados da peste negra que assolava os miseráveis além dos muros e das tentações de uma natureza obscura. Epicuro, entretanto, um grego que fundou seu jardim filosófico em Atenas, não teve de temer nem a peste negra nem os prazeres. no séc. IV a.C. grego a guerra era mais temível do que a doença. além disso, para o atomista em seu jardim os prazeres não poderiam corromper, como uma natureza cujo âmago reservasse tragédia e perdição aos sentidos.
dentre os 40 aforismos de Diógenes Laércio sobre Epicuro temos alguns a respeito do conhecimento da natureza (os de número 10, 11, 12, 25, 29, 30 e 31 fazem-lhe referência direta) que demonstram um entusiasmo impensável para um cristão preocupado com a gênese. o atomista ocupa seu pensamento e vida investigando o modo como o cosmos e o eu vêm a ser, ignorando a sua origem e libertando-se da angústia perante a morte - ele não deve penitência nem graças aos deuses. o medo da morte é um bloqueio para o prazer da vida no jardim de Epicuro. no fragmento 12, Laércio diz: "É impossível perdermos o medo que temos de nós quando indagamos sobre aquilo que acontecerá no fim da nossa vida, se não estivermos instruídos a respeito da constituição do universo (...). Sem o conhecimento da natureza, não gozaremos, pois, inteiramente, prazer nenhum." assim, se construímos "nossa segurança perante os homens" sem que "os acontecimentos no céu e na terra, isto é, no universo infinito, possam causar-nos algum receio" (D. Laércio, aforismo 13), estaremos abertos ao prazer. a felicidade aqui está baseada em uma vida tranqüila e segura, que nenhum deus, nenhum além, nenhuma morte ou mundo outro poderiam proporcionar, pois pertence ao mundo das coisas limitadas, terrenas, vivas e presentes.
a percepção dos corpos, em Epicuro, deve ser colocada entre os fundamentos de uma fenomenologia que retoma elementos de um pensamento pré-moderno. o jardim, aqui, é mais semelhante a uma vontade de conhecer e estar próximo do que de isolar-se do mundo em crise e estar distante do mal natural oculto. a carne biológica, física, proporciona prazeres fugazes de um desejo infinito, dependente inteiramente de um tempo ilimitado e angustiante, que se repetirá incansavelmente. já o saber, está ligado à sensibilidade da carne, logo à finitude ou a uma delimitação racional do mundo para que este ganhe sentido. o pensamente epicureu não se direciona à sensibilidade pura, mas ao espírito, em sua capacidade de apreender, avaliar, limitar, acabar com toda ilusão de eternidade e com a angústia do desejo insaciável. eis, então, um jardim que nos convida a deleitar e pensar os fenômenos com um grande senso de presença e realidade.
o jardim de Epicuro é do prazer presente. além disso, nada faz sentido, nada enaltece, nada é justo, nem nobre, nem venturoso a priori. toda a justeza humana, que muitas vezes é atribuída a determinações divinas, é fruto de convenções acerca do lugar presente e da necessidade de uma convivência harmônica que deixaria que a felicidade e o prazer fossem preservados. parte do aforismo 20 de Laércio demonstra que há prazer somente enquanto há carne e sentido. "... Verdade é que o homem sensato não evita o prazer, e quando finalmente as circunstâncias o obrigam a deixar a vida, ele não se comporta como se esta ainda lhe devesse algo para a suprema existência." uma tal vida, feliz e plena, só é possível se vivida com paz na alma, característica que Epicuro, no seu fragmento 31, diz ser o mais belo fruto da justiça. assim, o sábio é aquele que cultiva leis para preserva-se das injustiças que ameaçariam a paz de sua alma e dissipariam os seus prazeres.
Por fim, além de brindarmos a segurança do jardim de epicuro - que é dada tanto por uma saída da massa dos homens que têm uma concepção comum de que os deuses proporcionar-lhe-ão felicidade quanto pela existência da amizade - dizemos que lá é um lugar de vida ativa. pois "é sem valor pedir aos deuses aquilo que nós mesmos podemos realizar" (aforismo 19 de Epicuro). o presente e a vida simples são muitas vezes renegados erroneamente como lugares de utopia por uma sociedade que crê no real como uma vasta torre econômica lavrada por um Deus antropomofizado que, por ser justo, determinaria toda injustiça e desigualdade sociais, julgaria os bons como ricos. mas a sociedade assim formada é ilusória, pois o presente é lugar único da satisfação e da saciedade e no qual podemo-nos realizar, enquanto o mundo capitalista é construído inteiramente na possibilidade e na virtualidade econômica e o cristão, igualmente, em um ser que não pertence nem ao presente nem à carne.
"Quem menos necessita do dia vindouro recebe-o com mais alegria." (fragmento 32 de Epicuro)