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allan de lana

sábado, fevereiro 28, 2009

notas da partida (ou disputa?)
- escrito em outubro de 2008, postagem com pequenas adaptações

um tema recorrente entre os produtores de arte é a integração da obra ao mundo social, coisa óbvia, mas não simples. pode ser notada, porém, enormes variações nos olhares sobre o tema, quase todas de certo modo embrutecidas e simplistas, sustentadas com crenças e afirmações que poderíamos sem problemas converter em perguntas. há nelas, contudo, um ponto de confluência. a opinião geral concorda que o acesso público a bens ou fatos artísticos requer investimentos financeiros ou materiais, que dependem das pretensões de cada projeto e podem até se restringir aos custos de montagem. mas, quando a questão envolve mercado e profissionalização é que se costumam armar campos de batalha sérios, mas sem contribuições a oferecer - prevalece o debate pelo debate. por exemplo: ouço constantemente a idéia, quase nunca aprofundada, de que os grandes patrocinadores beneficiam projetos de menor importância. há um erro aí, como também em toda crença, pois tal pensamento, se possui razões, as omite, expõe somente uma ôca máxima e parte dela para outros argumentos apoiados em um nada. como veremos, esse exemplo permite tocar pontos-chaves da questão inicial: a integração da obra em uma cidade como Brasília ou no mundo regido por relações financeiras muito proeminentes, às vezes mais que todas as outras relações. há uma certa quantidade de artistas - aliás, muito grande - que não sustentam só a própria imagem, sozinha e pura (pretensão que aliás não passa de uma tolice irrealizável, na medida em que certa obra se torna pública e sua identidade, portanto, relativamente aberta), mas só a constroem selada à das instituições, como duas caras de um mesmo ser.

a frase apresentada - "os grandes patrocinadores beneficiam projetos de menor importância" - poderia se tornar um conjunto de questões. em primeiro lugar, caberia perguntar qual é o critério que determina esse menor valor de um projeto em relação a outros e ao meu próprio. tenhamos um cuidado, porém: a questão tem de ser desmembrada em outras, senão levará novamente à afirmação, como ocorre sempre que o questionador se julga vítima e, sob essa imagem, nutre a pretensão de entidade superior e mais confiável que as outras, pois capaz de sofrer como um humano lastimoso. desmembremos: o que é efetivamente esse "valor"? independente da minha própria existência e da outra entidade considerados individualmente, o que seria tal valor, ainda que um artista consagrado morra ou a direção de uma grande empresa mude? que tipo de construção a idéia de valor traz e como poderia assumir sentidos opostos entre a minha razão e a de um outro sujeito, de forma insuspeita, e ser dupla e contraditoriamente determinada? em outras palavras, como algo que dado produtor cultural ou um "grande artista" julgam universalmente inquestionável pode ser, ao mesmo tempo, questionado por um "grande patrocinador"? isso me parece decorrer de uma falha sempre repetida, mas nunca esclarecida. Também remete à existência de forças e poderes que determinam os dramas pessoais, as insatisfações, como um rio caudaloso atrai comunidades para perto de sua foz e torna uma região habitada. Aqui se situam as inquietações sobre o problema do julgamento - estético e, também, moral.

outro conjunto de questões refere-se a tal grandeza de uma entidade. sabemos que essa qualidade não é atribuída só pela quantidade efetiva de dinheiro que a entidade destina aos seus empreendimentos, mas pelas parcelas e promessas de valores que pratica e divulga. entre esses valores está o dinheiro, desde que este não seja considerado só materialmente (como o dinheiro - papel e moeda - que usamos para comprar um misto-quente), mas também e principalmente na forma virtual, como elemento capaz de preencher a grande e medonha bolha econômica que há poucas semanas conhecemos "de fato" (quando escrevi isso, havia mesmo poucas semanas da divulgação da crise). faz parte dessa investigação preliminar destacar o fato de tal dinheiro ser determinado por outros valores. ele mesmo, pelo menos por enquanto, é desprovido de vontade e, ainda que pareça ser e congregar em torno de si toda a espécie humana, há um outro lugar, menos passível de percepção em termos materiais, localizado na causa maior da crise que, como acompanhamos nos jornais, tem raízes no consumo de expectativas. e "consumo de expectativas", "especulação", "empréstimo a juros baixos e longos prazos" e "endividamento" são atributos que nenhum outro animal pôde desenvolver tão bem quanto nós, humanos. outro atributo de grandeza são as posses materiais ou os bens e ativos comprováveis... assim, sei que uma empresa estatal cujo patrimônio líquido ultrapassa os trilhões dificilmente deixará de pagar um de seus contratados - desde os contadores e faxineiros até a companhia teatral que se apresenta carregando sua marca. além disso, poderá cobrir um volume de gastos com um projeto que nenhum empreendimento familiar ou individual tem condições - por isso é tantas vezes privilegiada por todos aqueles grandes produtores que sempre reclamam de burocracia, lentidão, excesso de fiscalização... percebemos imediatamente que essas reclamações tentam forçar a inexistência de controle e auditoria nas instituições - o que obviamente, será sempre um desejo falido. mas também há valores de marca trabalhados pelo marketing, publicidade e outras ações de veiculação, de natureza bem distinta de valores altruísticos que levam ao "apoio incondicional" da cultura. digamos que existe aí um esforço não apenas cognitivo - de compreender as dinâmicas da sociedade e adequar-se nelas - mas, na medida em que se busca aprofundar raízes, o que uma empresa faz está no campo da construção ou, pelo menos, da modelagem - ela tem certa influência sobre os modos de vida e por isso inscreve-se efetivamente no mundo.

o problema que está sugerido, portanto, diz respeito, primeiro, ao julgamento da obra de arte (por que isto ou aquilo é bom e merece ganhar dinheiro para ser visto pelo grande público? Pergunta respondida de formas diferentes dependendo de quem a faz), depois, ao jogo entre produtores e instituições para que o público tenha acesso a espetáculos, obras, diversões, seja qual for a legenda utilizada. essas duas coisas podem ser tratadas em separado, mas interferem-se mutuamente. tal é o campo que pretendo explorar em algumas postagens (sabe-se lá quantas). não se trata de uma escolha à toa, mas de reação ao espanto de notar o quanto as instituições têm ganho qualidades sobrenaturais na cabeça do povo e dos artistas, que muitas vezes se dizem vitimados. Elas acabam sendo sobrevalorizadas como entidades cem por cento estanques, constituídas somente por si mesmas, auto-determinadas, mesmo quando estão sendo criticadas. ao mesmo tempo que lhes é outorgado socialmente o poder de agentes autônomos da arte e da educação artística, há e sempre haverá reclamações constantes de artistas e seus representantes, por não terem se sentido correspondidos de algum modo. espero que a abordagem provoque algumas mentes inquietas a pensarem a própria autonomia e uma outra configuração da economia artística. não julgo a priori que devam ou não continuar existindo instituições, nem artistas, nem mesmo buscarei refletir o grau de participação que os diversos agentes teriam nessa nova economia - embora confesse que isso seria um belo platonismo. mas podemos inquirir se tudo pode ser transformado com a valorização de outras formas de criação poética, produção e publicação das obras - aspectos que hoje em dia se idealizam separados demais, talvez por uma questão contábil, mas na prática permanecem alimentando-se mutuamente.

aqui no eau de parfum, postarei alguns textos espaçados, tratando dos dois tópicos já introduzidos:
- do julgamento; e
- do diálogo, tensão e escolhas situados entre produtores de cultura e instituições.

as perguntas sobre a renovação poética e a economia artística (em sentido lato) virão ao longo dos textos, quando pertinente e também, espero, no fechamento, caso eu chegue na conclusão desse trabalho.

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