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allan de lana

quarta-feira, outubro 07, 2009

o zero e o nada
Um arriscado legalismo surgiu na Secretaria de Fazenda do Distrito Federal, que doravante considera a concepção de obras artísticas nos mesmos termos de um serviço. Como cidadão que ainda me considero, protesto diante do fato, que registro a seguir. Depois, em outra postagem, arriscarei algum comentário, para sensibilizar acerca do momento em que vivemos de forma um pouco mais analítica.

Ao participar de uma exposição de arte, alguns artistas - cujos nomes manterei em sigilo se os próprios não me permitirem citar - conceberam instalações, mecanismos, esquemas, conceitos e coisas que, no momento, consideraremos sob o nome "obras de arte". Meu relato não tem a ver com o grau de autonomia ou determinação exterior que essa concepção teria. A discussão começa quando essas obras, que podem ser perfeitamente notadas do ponto de vista da sensibilidade humana, foram levadas a público e, para que essa exposição ocorresse, a produtora da mostra incluiu em seu projeto uma ajuda de custo aos artistas, que por sua vez arcaram com despesas decorrentes da concepção, transporte e montagem da própria obra. (Também não citarei o nome da mostra, da produtora e dos curadores, pois pretendo marcar que o presente protesto, no momento, é individual, embora as questões que suscita não sejam restritas ao meu pequeno mundo).

Essa renda ou ganho, claro, precisa ser comprovada e sobre ela incidem impostos entre os quais está o ISS. Para que isso ocorra, precisamos solicitar a emissão de uma nota fiscal, onde se especificam o tipo e percentual do recolhimento. É nessa especificação que se mostra um furo - ou pelo menos um lapso interessante - na prática de nossas instituições. A tributação de ISS considera que exposições (sem restringir tipos de exposição) devem ser taxadas em 2%. Obviamente, os artistas convidados levaram a público coisas que acreditam ser obras de arte, conforme um estatuto que nossa sociedade valida e que em certo sentido contribui para a auto-imagem dos sujeitos que aqui vivem, ainda que boa parte das pessoas chame instalações e "arte contemporânea" de "horríveis", "imateriais", "difíceis de entender e fáceis de fazer" etc. (e a tese da auto-imagem está, por essas críticas, reforçada, pois em nenhum momento jamais se argumentou que a arte de hoje impede que o público se projete nela). Os artistas realizaram, portanto, uma exposição, atividade prevista na lista de serviços do Decreto 25.508 de 19 de janeiro de 2005. Conclusão: exposição seria um serviço. Contudo, por mais simples que isso pareça, os fiscais da Secretaria da Fazenda do Distrito Federal discordam, ou melhor, consideram que não só a exposição deve ser tributada (em 2%), mas a concepção da obra também, alegam, é um serviço. Vejamos suas interessantes alegações, que me apresentaram depois que esperei na fila mais de uma hora para ser atendido e passei mais uns 40 minutos a explicar o enquadramento legal que o leitor viu neste parágrafo.

O fiscal disse que uma exposição de obra de arte com pagamento ao artista que concebesse sua obra especificamente para a tal exposição era contemplada pelo Decreto nos seguintes termos: "Produção, mediante ou sem encomenda prévia, de eventos, espetáculos, entrevistas, shows, ballet, danças, desfiles, bailes, teatros, óperas, concertos, recitais, festivais e congêneres". Nesse caso, a tributação é 5% (mas não é só com esse índice 3% acima que devemos nos preocupar, há algo muito grave escondido aí, que avaliaremos logo-logo, em um outro artigo cuja elaboração é mais complexa). Meu interlocutor disse ainda que artista nenhum recebia por expor sua obra pois, segundo ele, a exposição sempre seria o grande interesse daquele que estaria "divulgando seu trabalho", portanto, possibilitaria conhecimento pelo público e, conseqüentemente, a "venda de quadros". Em face dessa teoria, meu interlocutor afirmou que desconfiaria sempre de minha reivindicação, uma vez que, se "nenhum artista recebe para expor uma obra" (e se considerarmos essa uma verdade inconteste - o que não é, obviamente, cabível, embora o fiscal opte pelo incabível), se for incontestável que a exposição de arte é sempre realizada pelo artista gratuitamente, o caso previsto no Decreto como "Exposição" não se pode referir a exposição de arte, mas à "produção de qualquer exposição", incluindo nessa "produção" a produção de exposições de arte. Percebe, leitor, o universo que a palavra "produção" inclui na discussão? Ocorreu que, quando contestei todos os argumentos que me foram dados, o fiscal solicitou que eu aguardasse e voltou depois de alguns minutos.

Olha, Allan - dizia o rapaz -, eu consultei os meus colegas e eles são unânimes em dizer que ou é nota com 5%, ou é nada, ou cinco ou nada de nota, essa é a nossa opinião aqui dentro. O que você escolhe, me perguntou ele com astúcia no rosto.

Eis o relato, enquanto tentei separá-lo da minha análise e apresentação da gravidade do problema desse tipo de legalismo por opiniões. Fiz a separação para que todos os leitores tenham o mesmo prazer que eu, de poder navegar mentalmente em nosso mundo social (ou pelo menos nessa tentativa de descrever um evento ocorrido nele) como se passeasse em alamedas, eventualmente nadasse em enchentes do Tietê, sentisse o calor provocado pela aceleração do efeito estufa... Enfim, é preciso possibilitar a sensação de que se tem direito à liberdade de sentir. E então, o que você sente aí? Não vá dizer que está anestesiada, que não sente nada! De minha parte, sinto algum temor e, além disso, um pouco de revolta...

Minha avaliação, no momento, é bastante curta mas, em breve, se eu puder, trarei algumas reflexões cruciais sobre complicações que vejo surgirem e permanecerem no campo que temos chamado de "arte contemporânea" e decorrem sobretudo de seu contato com todos os campos da tal "vida contemporânea", coisas que nós, os ditos "artistas", felizmente não temos como frear.

Vejamos... Claramente, há dois erros nas considerações do meu interlocutor que invalidam suas alegações, além de alguns deslizes que mereceriam um destaque maior em outra ocasião.

Primeiro ponto. É provável que a exposição de uma obra de arte seja prevista no decreto sobre recolhimento de ISS sob a denominação "exposições". A alegação de que toda exposição de arte é feita pelo artista gratuitamente talvez não seja verdadeira. Ou ela é falsa, ou então a maioria das pessoas que me disseram ser artistas são falsas. Certo, considerando que nos últimos cinquenta anos várias tentativas de desvincular arte e representação ou levaram à morte literal do autor ou se frustraram, no sentido de aumentar mais ainda o arsenal ilusionista para as gerações futuras, então, sim: todos os artistas não são artistas!!! Ou melhor, todo artista é mentiroso e se diz artista... Ou, quero dizer... Complete você mesmo a reflexão: _____________________________________________________. Até segunda ordem, boa parte dos artistas que são mentirosos recebem dinheiro para expor (eu sei disso, embora nem sempre eu seja mentiroso, só quando preciso de dinheiro). Os pintores muitas vezes são sinceros.

Segundo ponto. Há uma confusão no uso dos termos "produção", "criação" e "exposição". Em primeiro lugar, quando a tabela de serviços da lei cita que sobre "exposições" incide uma alíquota real de 2% de ISS, ela não inclui a expressão "produção de" nos termos do predicado, de modo que a exposição mesma não envolve produção. O fiscal foi quem incluiu essa última palavra, para dar sentido aos argumentos de seus colegas, que, conforme vimos, formaram consenso e, com isso, concederam poder de representação a seu representante. Assim, ele afirmou que o que eu fiz não foi produção da exposição de uma obra, mas criação ou produção da obra mesma mediante encomenda. De fato, "produção" aparece no item ao qual o fiscal atém a defesa do ponto de vista de seu grupo: "Produção, mediante ou sem encomenda prévia, de eventos, espetáculos, entrevistas, shows, ballet, danças, desfiles, bailes, teatros, óperas, concertos, recitais, festivais e congêneres". Para ele, produzir é sinônimo de "conceber". Claro, se olharmos em um dicionário, esse sentido estará no rol de definições. Mas então, por que não há, na interminável frase retirada da tabela de serviços, qualquer menção à produção de objetos ou pelo menos obras fixadas em um suporte ou material? Produção de esculturas ou colagens, por exemplo? É que produzir aí não é o mesmo que conceber. Obviamente, a lei está se referindo à produção como um serviço prestado, um agenciamento de coisas que não interfere de forma alguma em sua natureza, mas as leva para um contato com o público a partir de uma espécie de mediação entre veículo, público mesmo, instituições parceiras e intérpretes, tendo como resultado final o acesso do público à ação dos intérpretes. O modo de imanência das artes visuais não permite que esse mesmo tipo de serviço seja realizado. Uma obra visual pode enfocar a teatralidade do público junto às obras e o espaço negativo entre elas, mas não a interpretação do artista diante do público. Uma partitura em arte visual não é igual a uma partitura presa com alfinetes nas costas de um músico de banda militar, à qual o músico de trás deve interpretar sem que o público tenha acesso. Uma obra dramatúrgica utilizada nas artes visuais (feita ou exposta para ser vista) não teria o mesmo caráter se fosse encenada por atores em um teatro, quando seu valor é de um código oculto do ponto de vista da platéia, mas acessado e transcodificado por uma companhia. A partitura feita para ser vista tem uma objetividade específica que dispensa o intérprete, enquanto a que se destina ao músico e é escondida dos olhos da audiência para que essa tenha uma orquestra fifiricando seus ouvidos requer intérpretes profissionais. Sem esses intérpretes, não faz sentido produzir um espetáculo no sentido que a lei confere à palavra produzir, quando escolhe citar eventos em que de alguma forma o intérprete (ou o porta-voz, no caso da entrevista) está presente. Mas podem ser produzidas exposições, sim e, se isso pode estar incluso entre as atividades a serem tributadas em 5%, a diferença entre produzir e conceber ou entre produzir e expor deveria ser lembrada. E mais, se aquele outro item que cita diretamente a palavra "exposições" tiver de fato, de maneira implícita, a palavra "produção" em seu predicado, o índice do tributo pago pela produtora é 2% e o artista cuja obra é exposta é isento, pois sua atividade não é contemplada na lei.

Contudo, até agora não nos detivemos sobre o significado da expressão "mediante ou sem encomenda", já que o fiscal alegara que determinaria o recolhimento de ISS em 5% porque era a alíquota correta sobre uma obra "produzida sob encomenda". Mas ele esqueceu do "ou sem". "Produção mediante ou sem encomenda". Se produção tivesse o mesmo sentido de concepção, o que ocorreria com os coitados dos falsos artistas, e também com os verdadeiros? Vejamos o esdrúxulo gravíssimo dessa insinuação: mesmo nos momentos em que resolvessem iludir os outros sem que alguém os solicitasse, teriam de recolher 5% de ISS. Mesmo que se inscrevessem em um edital público que oferece espaço, mas não dinheiro para exporem, seriam cobrados pelos amigos do nosso fiscal. Mas, ora, por que um Decreto estabeleceria a tributação de um ganho inexistente? Vejam essa hipótese: aqui neste apartamento, eu viveria elocubrando ilusões e materializando-nas, isto é, produzindo instalações compulsivamente, escrevendo novelas e roteiros, dramas e romances, de modo que eu mesmo tivesse que viver no espaço existente entre a pia e a geladeira, pois não me caberia mais nesta sala, no quarto ou nas áreas comuns do prédio e vagas de estacionamento. Já estou em minha quarta Merzbau e oitava Santa Ceia. Se a produção enquanto criação é um serviço, nunca vi ninguém, nenhum cidadão ou cidadã, que tenha prestado um serviço voluntário tão intenso como o que tenho prestado, pois a minha principal atividade durante a greve dos bancários (eu sou bancário) tem sido produzir produzir e produzir. Porém, esse não é um serviço voluntário qualquer, mas um serviço voluntário tributado em 5%, pois é criação. Além disso, já que o serviço voluntário é voluntário e por ele eu não recebo, somando-se ainda aí o fato de que conceber obras de arte é sempre um serviço tributado mesmo que não seja sob encomenda, a tributação de 5% implica em um valor de zero reais declarado em nota fiscal para recolhimento do tributo, pois fiz uma produção sem encomenda, logo sem pagamento. Por que isso apareceria em um Decreto, repito?

Detalhe. Resolvi perguntar ao meu interlocutor: e se eu não produzisse quadros? Pense mais alto um pouco, imagine que eu sou um artista convidado para uma bienal e estou recebendo quinze mil para levar uma instalação que ocupa um andar inteiro de um grande prédio. A resposta do interlocutor: ah, mas esse caso não está previsto em lei! Você não seria tributado, pois não estaria prestando serviço.

Só mais um detalhe. Hoje eu realizei uma performance que consistiu em recolher pedras de gelo enormes que a tempestade atirava violentamente no chão e colocar no congelador. Eu mesmo, representado pela minha mão direita, que gostou muito do show (e da chuva também) paguei à minha pessoa, representada pelo espaço entre o hálux e o segundo dedo do meu pé esquerdo, o total de cento e quarenta reais, utilizando uma nota de cem e dez de dois, sacadas em caixa eletrônico para contribuir com a pressão exercida pela greve dos bancários na opinião pública e ganhar rapidez de negociação. Minha dúvida é se devo recolher sete reais pela performance ou não.

Na verdade, tenho certo temor com os rumos que um sistema de tributação mal feito pode tomar, se um dia o legalismo sobrepujar a discussão, o espaço do debate, a política no sentido amplo e profícuo do termo. E se um dia, eu pergunto, quando estivermos tomados pela insensibilidade à discussão, uma obra qualquer de qualquer um que agora lê este blog... Se um dia aquele desenho que você fez quando tinha 7 anos de idade for leiloado por algo em torno de cem mil reais? Você aceita pagar pelo valor da obra que criou? Ou então, se você é um artista ativo e um familiar seu resolve vender uma obra - uma pintura - com a qual você o presenteou ontem? Por que a defesa da sensação da liberdade de pensar e exprimir teria ocorrido desde os primeiros tempos de filosofia, desde os tempos da sabedoria, e hoje essa defesa deveria ser tiranizada pelo vício mercadológico? A questão aqui é política: trata-se de decidirmos por uma idéia aceitável de justiça e isso só se faz discutindo.

Agradeço ao meu interlocutor e seus colegas. As piadas deste artigo não se estendem a eles, somente às situações vividas com aquelas pessoas que respeito profundamente. Espero que compreendam a importância do debate desse tipo de assunto em público.

Neste momento, aguardo resposta a uma reclamação que fiz junto ao GDF para saber o dia de amanhã.

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