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allan de lana

sábado, setembro 05, 2009


Pretendo fazer umas observações enquanto antena, já que me apresento como um particular no gênero delas. Encontrei essa idéia na citação a Jimi Hendrix, feita pela revista Bizz que estava recortada em uma gaveta de velharias. Jimi falava mais ou menos assim: "meus cabelos são radares que captam e enviam ondas para o universo". E digo que aquele que é chamado de "artista" tem oportunidade de fazer uso desse "Enlightement", uma iluminação que lhe é conferida a partir do nome e o autoriza utilizar sua antena ou radar em uma freqüência, digamos, integrada - mesmo que ele se aplique, na maior parte do tempo, a habitar à margem da designação.

Sim, tudo poderia ser diferente, mas o nome e o ser nomeado têm seu flerte com a instituição - sobrevive e é aceito por convenções, por um "ser assim". Tanto é que um ritual de auto-cremação em Bali, descrito por Clifford Geertz em um de seus ensaios publicados na compilação "O saber local", por mais que seja maravilhoso e apresentado pelo autor como acontecimento de natureza artística, dificilmente deixaria veicular-se na Galeria Acervo da CAL. Nem o Povo Balinês, nem as nossas instituições aceitariam, aliás, que a transposição ocorresse e uma mulher vestida em trajes com estampas entorpecentes (como uma floresta barroca cheia de símbolos só vista por nós em algumas catedrais mineiras), depois de picada pela serpente curvasse seu corpo rumo ao abismo incandescente.

Na verdade, nosso edifício reservado à arte é sempre meio ascético. Portanto, ter um espaço de ação legitimada me faz sentir à maneira de um fisiólogo do século XVIII em seu laboratório e com sua liberdade de experimentação. Já Geertz, no seu fazer etnológico, pode experimentar mais "de perto" as variações culturais - significando esse "de perto" que ao aproximar-se da diferença cultural, o que ele aproxima não será jamais um sentido positivo da cultura-verdade mas, possivelmente, aqueles discursos que formam territórios a partir da invisibilidade. Aquele dizer que fez com que o espaço do xamã se delimitasse, devido ao qual dificilmente conseguiremos dissociar território e magia. Olhar o céu e ver o destino (misticismo de origem da linguagem abordado por Walter Benjamin); paralelamente: olhar o edifício e ver a arte, olhar a obra e ver o artista. E quanto tempo demorou para que esta cidade hiperreal do Sonho de Dom Bosco e do Relatório Cruls se tornasse a "Brasília Capital da Esperança" de André Malraux? (A idéia de "ter" uma representação atua ao ser atualizada sob uma roupagem da moda). Ocorre que, nesses lugares atribuídos e sonhados, estão contidas as variáveis estáveis de que precisamos, na medida em que são lugares de identidade por excelência, onde um povo se pensa radicalmente estático e sólido, onde pode, com isso, doar seu corpo para a nossa experiência: sua certeza, minha obsessão!

Desse modo, valendo-se da certeza alheia, um Marquês - da peça "O Veneno do Teatro", escrita pelo catalão Rudolf Sirera e adaptada pela cia. Veneno do Teatro - ordena que o mordomo de sua residência tranque a porta e vá embora com as chaves, com objetivo de testar as próprias teorias fisiológicas em um ator renomado que o aguarda na sala para ser recebido sem saber o motivo do convite que recebera. O anfitrião pretendia dirigir a encenação de um texto seu e, para tal, havia preparado o cenário do local onde o personagem Sócrates narraria a própria agonia após envenenado de cicuta. E seria até mesmo a morte uma representação? O que pretendia o Marquês era chegar à essência de uma encenação última, conquanto fez o próprio ator acreditar-se envenenado, a título de estímulo à familiarização com as idéias de um obsessivo diretor-cientista, para depois, de fato, provocar o envenenamento. O ator, que acreditava poder reproduzir várias vezes perfeitamente uma atuação idêntica, irá representar a cena fatal e única, no palco montado para engrandecê-la e dar-lhe qualidades críveis de uma autêntica imitação. Como seria a humanidade, entretanto, sem representações? Dizia o Marquês (na ambientação de final do século XVIII) que seu status social e fortuna, assim como as desigualdades entre ricos e pobres, também não eram mais que convenções e, portanto, seriam reversíveis. Qual a diferença entre vida e teatro, então? Talvez a de que as convenções deste último têm positividade no discurso, enquanto o que chamamos de "real" omite as idéias de palco, figurino e cena - mas trata-se de omissão, não eliminação... Lembro-me de ter visto certa vez um grupo de dança executando uma ação ao ar livre e, inicialmente, duvidar sobre o que seria aquilo, até colher elementos suficientes para me fazer concluir tratar-se de representação, não somente de pessoas que gostavam de correr para um lado e para outro.

Na década de 60, surge uma arte americana voltada para esses "palcos" de visão - elementos que nos dão uma intenção no olhar e separam um envenenamento real de uma morte teatral -, do qual faz parte a idéia de que a galeria de arte já é, por si, algum tipo de representação estrutural contida no terreno de possibilidades que o saber legitimado lhe reserva. Les Levine realizou um gesto notável: simplesmente instalou duas lâmpadas monocromáticas de vapor de sódio na Fishbach Gallery (Nova York), que desapareciam com a sombra dos espectadores e, segundo Brian O'Doherty (No Interior do Cubo Branco), "recriavam o espaço" - ofereciam-no à visão! O mesmo ocorria com as pessoas que entravam no ambiente, totalmente privado de cor pelas lâmpadas. O grupo Rosário, com um "Ciclo de Arte Experimental", também realizou um experimento alquímico nesse sentido, quando esperou a entrada dos convidados na galeria totalmente branca e vazia para incorporar o mesmo espírito do Marquês que comentamos há pouco. Os integrantes fecharam hermeticamente as portas do recinto e se puseram a observar a reação dos "aprisionados", que depois de cerca de uma hora quebraram os vidros da janela e saíram (Lucy Lippard - Seis Anos: a Desmaterialização do Objeto de Arte de 1966 a 1972 - citada por O'Doherty).

O artista, convenhamos portanto, ocupa seu locus privilegiado, quando os visitantes acreditam poder vê-lo na alma a partir da obra. E como pode ser que a alcunha de "fauve" fosse dada a Matisse - fato lembrado na retrospectiva que está na Pinacoteca. Leram a sua alma a partir de algum medo próprio - fauve, selvagem, bárbaro... Projeção que talvez guarde um pouco de objetividade, ou pelo menos de auto-objetivação no que o Outro (o Matisse) manifesta de não-comum e utópico. Justo nessa ambivalência da afirmação, embebida pelo lugar-comum que a enuncia, ela mesma pode ser utilizada para compor uma noção geral de tal lugar. Muitos diriam hoje: é que o artista foi tão revolucionário que a civilização que o via não o entendia. Esse é só um exemplo, superficial, para mostrar o quanto as almas designadas por palavras absolutas são, na verdade, uma relação de inter-dependência, um ver-a-si em um outro, cujas fórmulas já nos são relativamente familiares ("eu não sou eu, nem sou o outro / Sou qualquer coisa do intermédio" - Mário de Sá-Carneiro...). Trata-se de um campo experimental da arte, deparado com certa indeterminação constitutiva, sobre o qual ouvi a crítica de que é incapaz de mudar a realidade social, acompanhada da acusação de ser elitista. Atua nesse nível uma disjunção radical entre público e arte contemporânea, que às vezes parecem acreditar que o embate neutraliza consequências históricas e culturais e a oposição anula a interdependência dos discursos. Ilusão: por que a discordância também participa na formação de configurações territoriais e históricas.

Realmente, esse tipo de crítico notou, de alguma forma indescritível, um elemento estranhamente mantido em relativo sigilo na prática da intervenção como forma de arte: a atração de altos investimentos do governo e privados, às vezes da ordem dos milhões de dólares, para fazer com que o vazio - o ar, o invisível - se dê a perceber (observo que o vazio costuma aparecer muitas vezes ao lado de uma ideologia de "terceiro setor" e de lindas logomarcas público-privadas). Creio que esse aspecto carrega não só uma simples ambivalência, mas de fato, contradições. As mesmas de que me lembro quando algum doutor em sua própria obra (esse campo hermético e estrito que a Academia inventou, chamado mais apropriadamente de Retórica do Umbigo) lança contra mim a acusação de ser um "funcionário público" e não um "artista". O caso poderia ser matéria das piadas de Ari Toledo. Assim também podemos dizer que Carlos Drummond jamais foi poeta, ou que o campo da poesia mesma seja totalmente irrelevante, tendo o funcionalismo público desenvolvido melhor sua matéria do que os próprios "Escritores de Verdade". Parece insano que alguns professores concursados que nem sempre conseguem vender seus vazios a preços suficientemente caros para se sustentarem com a ostentação ilustrada da alta sociedade brasiliense, apresentem esse tipo de argumentação... Cabe observar que aqueles vultosos investimentos, no Brasil, dificilmente vão direto para os artistas visuais, cujo sustento, observo, vem de outras atividades, muitas vezes mescladas com a venda ou exposição de obras. Por isso a tese de elitismo da arte fracassa não por estar errada, mas por ser simplista. O problema de se almejar uma elite para a arte é bastante complexo e não é à toa que eu, Drummond, Mário de Andrade e outros coitados não somos artistas. Trata-se de um conflito típico da condição doentia onde quem faz a acusação precisa dela em seu campo de alívio, de descarga (alguém tem de espiar por sua insuficiência), já que apesar de alimentar uma condição social desigual e uma sociedade quieta, recusa-se aos sindicatos e associações, os quais são sempre, quando aparecem, realmente uma farsa (será a Ordem dos Músicos um dos melhores exemplos dessas entidades?). Entretanto, a arte-espetáculo, uma estrutura de poder enorme, pode simplesmente bater na mesa e dizer o que quer, como a criança mimada, enquanto aqueles outros pequenos artistas sem muita voz e frustrados - frustrados por que sem privilégios -, nunca estão sozinhos. Sua infelicidade costuma residir na dinâmica da estrutura-poder em que o seu cachê baixo dá trabalho para grupos grandes de pessoas, entre as quais não está ele mesmo em "boa posição financeira". O que ele ganha a vida inteira dando aulas não pagaria 60 segundos de propaganda em uma grande emissora de TV. Esse é o sujeito especulador de hoje: tentará vender sua obra cada vez mais caro, contra a tendência de manter o congelamento do preço baixo de seu trabalho. E nisso está não apenas um dos fatores de queda no nível da docência, mas o motivo pelo qual a arte do poder ideológico que aspira o mundo do espetáculo será sempre subjugada. Talvez por isso, presumo, surja o tema "ser ou não ser" (oh, como dói não ser artista! haha), no qual Wols já dizia, em um poema: "arte, para artistas": que eles tomem conta de seu terreno como pit-bulls universitários e que eu e outras personas continuemos nos apropriando de sua obra - talvez como cientistas malucos ou funcionários apaixonados com "desvio de função" -, é o que interessa, para ver esse "mundo de artistas" se mostrar mais e melhor. (veja só um exemplo de coisa que podemos chamar de "Mostra de Arte", uma grande "aspiração" coletiva: quem quer pão.)

Mas há outro aspecto do denominado "elitismo" que merece atenção (e não está fora das contradições apontadas acima). A arte questiona seus próprios limites, com isso atua no limiar com a vida cotidiana, já que bastaria lançar sobre essa um olhar distanciado para torná-la uma possível obra. Trata-se da retirada do aspecto sacro que envolvia as imagens antigas e levou com que as condições imediatas de acesso à obra, sua materialidade ou imaterialidade, se tornassem acessíveis ao cidadão comum, sem que esse tivesse de dominar um código bíblico ou saber grego ou latim, isto é, sem partilhar de uma noção hegemônica do saber. Mas quando falamos de "condições imediatas", excluímos erroneamente a possibilidade quase sempre recorrente de que toda uma tradição sustenta as obras dos dias de hoje - e sempre foi assim. Desse modo, a acusação de hermetismo não fará sentido quando não considerar o que chamarei por enquanto de "discursos ou comportamentos artistas" - empreendidos pelos que se auto-denominam artistas ou teóricos (theós=deus) de arte (este texto, por exemplo). Talvez por isso, ouçamos com frequência: "se o público não compreende, que troquem o público". Essa espécie de batalha se torna bem evidente em instalações como "Territórios Soprados" e outra que ela cita muito diretamente, "Toca" (realizada também na CAL por Matias Monteiro e Luciana Paiva), como em inúmeras outras. Um testemunho da querela pode ser lido na crônica A Exposição, de Jason Frutuoso. Aqueles dois momentos dividem as opiniões entre os sujetos que conseguiram experimentar algum fenômeno e os que simplesmente se sentiram ludibriados ou não-correspondidos em sua expectativa particularista (para não dizer individualista) de encontrar uma "expressão do Grande Gênio". De fato, porém, pouca gente ousa ir além desse "contato imediato".

Quanto à apreciação da obra esperando dela a emanação de qualquer força que modifique a relação entre classes: pode significar a crença enganosa de que só é válida uma arte panfletária ou que o acesso à cultura dominante veiculada nas galerias pode dar dignidade aos pobres, quando esse acesso só dá conta de uma parte da guerrilha cultural que um dia talvez - assim espero - seja re-instalada. E qual seria afinal o teor dessa "acessibilidade"? Assistencialista? Propagandista? Talvez racista? Mas quem teria que mudar o mundo se o quisesse não seria o próprio público? De que adiantaria colocar uma pintura de Rembrandt pendurada na máquina de caldo de cana de uma pastelaria da rodoviária de Brasília, sob alegação de que ali o fluxo de gente é alto? Não seria isso um atentado ao saber local e à cultura do povo? Afinal, não é a tela que contém a revolução - mesmo que recorramos a uma "Liberdade" heróica de Delacroix ou a um sanguinário massacre do poder instituído pintado pelo anarquista-pontilhista Pissarro (isso seria tornar essas obras uma baboseira sem limites). O povo que se encontrava e sentava para conversar nessa rodoviária projetada para ser o não-lugar por excelência contrariava o fluxo estabelecido e, nesse sentido, sim, poderia ter sido um embrião revolucionário capaz de forçar novas leituras da sociedade e relações de produção diferenciadas. Só não será incoerente querer que a arte transforme, como mágica, a sociedade, no dia em que se assumirem posturas que os mesmos defensores dessa transformação condenam, mas que não são novidade. O mais hilário seria criar um happening anti-governo ou uma série candidaturas-performance capaz de colocar um monte de malucos criativos sem precedentes na Câmara, Senado e, o que parece um pouco mais fácil, na Presidência da República. Bem que não seria pouco engraçado, sobretudo quando uma sociedade cruel e desigual se re-configurasse sob a bandeira de um patriotismo de artista, que tomaria totalmente também os tribunais, substituindo uns facínoras oportunistas atuais por novos.

Esses são os pensamentos que achei importante compartilhar ao término de "Territórios Soprados". São anotações um pouco rápidas, talvez sem muito esmero e por isso com algumas qualidades de um ensaio e aparente insuficiência de crônica jornalística. Mas essa despreocupação parece a única possível no momento em que pretendi anotar e compartilhar muitas impressões que a ocasião me propiciou.

Para não passar em branco, pontuo que foi instigante ter presenciado uma divisão abrupta das opiniões das poucas pessoas que foram até a instalação. Além disso, também pude viver muito frontalmente certa amplitude do que se inclui no termo "representação" e algumas ilusões que a nossa democracia representativa nos reserva, sobretudo quando propus agregar à obra a ser exposta a idéia de não-curadoria. Isso tem tudo a ver com o questionamento de certa configuração territorial legitimada. Tive até mesmo algumas hilárias dores de estômago quando um moço auto-denominado (e por telefone) "representante do curador" avisou que "não pega bem uma exposição sem curadoria" e encomendou textos adesivos com o nome da figura ausente. Acho o Senhor Curador, cuja identificação subscrevia o título "Territórios Soprados", pertinho da expressão "Artista: Allan de Lana" (ah, redenção: Artista com A maiúsculo!) até muito simpático, brincalhão, piadista. Ele, que depois mostrou ter compreendido a obra como ninguém, costuma fazer belos discursos sobre artistas brasileiros, mas sequer sabia o que estava à sua espera na Galeria Acervo da CAL (olhar e conversar pra que, quando se pode ser evocado e representado como Tele-Entidade Elevada mesmo depois da morte ou durante uma simples viagem?) Obviamente, por uma questão de "representatividade", eu mesmo destaquei as letras de seu nome, para não decepcioná-lo, e mantive afixados somente o "a" e o "r" (ar) de uma das sílabas. Esse é um relato importante, pois, não sei por que (pelo menos faço de conta que não sei) a imprensa resolveu divulgar a exposição sob o título "O Claro e o Escuro", em uma tentativa de riscar o seu caráter crítico e sua ambição política (isto significa: tentar abanar o sopro), para estranhamente tentar levá-la a público como se fosse arte sacra. Mais engraçado foi os jornalistas quererem saber: "qual a simbologia da luz no seu trabalho?". E nem sei também por que eu disse que era a auréola de Alá antes de explicar o dogma figurado de Santo Agostinho de que a treva reforça a luz - isto é, de que a Igreja e Deus (luz) precisam tirar proveito da Miséria e Desgraça (treva) - e de minha predileção pela negritude absoluta, já que sem a idéia de iluminação como símbolo a escuridão não figura o mau, mas sim o escuro como uma das possibilidades mais construtivas para a existência humana e a fertilidade do imaginário. Nelson Brissac Peixoto aborda lindamente o assunto em seu livro Paisagens Urbanas ao falar do fotógrafo cego, vivido na íntegra por Eugen Bavcar, que precisa enxergar a partir do contato com as massas de ar, modo como cria sua experiência do real e, no lugar do pousar narcísico dos modelos fotografados crentes de serem exemplares de beleza, faz surgir a cumplicidade do olhar e do deixar-se ver.

Agradeço a Casa da Cultura da América Latina, de coração, por ter deixado que eu utilizasse seu laboratório-galeria para a experiência de cumplicidade do olhar que em parte relatei. Seguem outras fotos...



As imagens mostram:
- módulo "O sopro" - aquarela sobre papel emoldurada e parafuso. Os resíduos do pó oriundo do furo onde foi afixado um parafuso a 1,70m do chão foram deixados sobre e em volta da aquarela emoldurada, que flutuava a uma pequena altura, falsamente recostada na parede;


- módulo "Por favor, não ultrapasse a linha branca!" - corretivo de texto, teku-teku miniatura e pedra.

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