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allan de lana

domingo, outubro 05, 2003

Eu, Você, Nós.

Visitação na Galeria da UnB (406 norte).

Eu. Cinco caixas pretas sobre pedestais. Quatro chaves em suas fechaduras. Caixa a caixa ou chave a chave se busca a combinação certa entre chave e fechadura. A subtração do corpo essencializa sua composição. Ao invés da "Vênus de Gavetas", somente as gavetas e o conteúdo: sangue, água, carne, ar. E a quinta caixa? Inacessível por meio das quatro chaves: gaveta a que só a própria vênus tem acesso. A autora (que é a Mariana Pagotto e, como diria Mário Pedrosa, é minha amiga) caiu na obra e, portanto, fala de si. O "eu" está expresso naquilo a que não se tem acesso.

Você. O fechamento escuro, misterioso, do "eu" é revertido. O local da morte está isolado pela fita da perícia: no chão, um desenho a giz da silhueta do falecido; na parede uma foto de parte de seu tórax e abdome o esconde mais do que o revela. Ao lado, pertences do falecido e registros policiais e médicos da situação, causa da morte e atestado de óbito. Cada objeto remete a situações e hábitos daquele a quem não conhecemos. O "você" é revelado sobretudo por seu percurso vivido. O evento e a própria galeria entraram para a condição de você. Na abertura, a obra teve um impacto que não será mais recuperado: a mesma data da vernissage e do registro de óbito, um dia depois da morte por desidratação. Por acaso o Matias (que é muito inteligente, perspicaz e - de novo o Mário - é meu amigo), encontrou uma cobrança da CAESB para que a UnB pagasse sua conta d'água. Não hesitou, emoldurou-a e a colocou nos pertences do falecido. Esse ato revela (ou reforça) uma minúcia sedutora e uma discussão sobre a raiz do próprio trabalho de ordenação empreendido pelo artista (que ilude), minúcia também revelada pelo acaso não-acaso das molduras desalinhadas propositalmente. A aura do "você", para quem sabe da cobrança da CAESB, se torna um misto do você anterior com a instituição. Quem quiser saber mais, visite a exposição, o "você" tem muito mais a dizer. Interessante compará-lo com o "eu", para quem o acesso à diferença é vedado: em "você", toda a matéria protetora do "eu" perdeu sua função e a aura dos pertences é o indício das particularidades, ao mesmo tempo que nos deparamos com indícios de que aquele outro indício aparentemente espontâneo teve seu aparecimento forjado. Há, logo, uma dupla sinceridade, e uma delas é forjada.

Nós. Objeto auto-simbólico, feito com tiras de pano multicolores unidas por nós formando uma massa unida erguida por um gancho, dependurado no teto. Na parte de baixo dela, outro gancho une à massa fortemente escultórica panos soltos, não tensionados. Sua simplicidade funciona como se materializasse subrepticiamente um pensamento abstrato. Não há o diálogo conceitual intenso presente nas outras duas obras. Raimundo Kamir, que é meu amigo, opta por uma expressão individual e mantém diálogo com os panos usados na vernissage para forrar a mesa de comes e bebes e criar situações de convivência sobre a grama do lado de fora da galeria. O "nós" é uma praxis.

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